UM DIA NA VIDA
Imensuravelmente estupefato, meus olhos presenciavam o clímax do crepúsculo que transfigurava-se em cores inexistentes, pedi uma cerveja para acompanhar-me durante o espetáculo.
-NÃO PODE FUMAR NO RECINTO- dizia o aviso.
Rondei novamente o oculto e curto espaço que me cercava e em pouco tempo um vacilante barco chamado "consciência" oscilava no flanco das ondas e desapareceu no mar revolto & longínquo que banhava minhas convicções.
É um belo lugar para ouvir os gritos do céu que chora pelo parto da noite nascitura. A cerveja chegou e o primeiro gole apagou o incêndio que ardia em minha garganta.
Já me embriaguei aqui antes, concordava comigo enquanto recorria às reminiscências de minhas vidas passadas.
O quadro de Rembrandt acima da vitrola por um momento se tornava mais familiar que minhas próprias mãos.
Acendi o cigarro que tinha por muito tempo atrás da orelha e mandei com voracidade a fumaça morna para esquentar meus pulmões, já que a frívola noite havia anunciado sua tênue chegada permanente.
Ao pé de meus olhos pulsavam vibrações inquietas e insatisfeitas do ambiente incompreensível que me encarava.
A fumaça bailava sorridente e me convidava para ascender junto à ela aos céus sob a valsa muda da noite, o pedido foi seduzente, porém eu não tinha sapatos pra dançar, afinal, aonde deixei-os?
Perguntei ao garçom e ele fez com que eu apagasse o cigarro, concordei educadamente e perguntei novamente onde estavam meus malditos sapatos, ele me disse que eu os havia perdido pelos corredores de minha memória, fazia sentido, concordei e pedi outra cerveja.
Outros goles desceram, lembrei-me da dificuldade de fumar no local, uma monstruosa cólera se aposentou em meus anseios!
"COMO NÃO SE PODE FUMAR DENTRO DE UM BAR?" tomei outro gole.
Outro "look" ao redor e agora as paredes tornavam-se úmidas, de repente um corvo batia suas lúgubres asas 10 vezes por segundo dentro de mim, uma terrível febre atolou meu coração.
Meu coração (este bobo) que sempre foi tão vulnerável aos olhares dos corvos...
Imaginei ter asas por um momento, rasgando os ventos perdidos do norte.
Ah! como seria magnifico olhar esta podre cidade de humanos fúteis de longe,
e me dar conta de que a minha única preocupação seria em voar rumo às quimeras desconhecidas...
Enquanto idealizava as exuberantes asas no lugar dos meus braços senti uma geladíssima língua subindo em minhas entranhas, me entreguei àquele deleite sem muita resistência, quanto prazer carregado em uma língua!
A essa altura já havia esquecido meu nome e minha alma dançava, descalça, uma valsa familiar, tentei ver quem me concebia o extremo gozo de ser chupado, entretanto meus olhos não conseguiam desprender-se do infinito, estava hipnotizado pelas danças fluentes da eternidade (como um rio destemido que corre em direção à quedas abismais).
Foi com muito esforço e dificuldade que consegui desgrudar-me das delícias e fitar os olhos de quem me amava tanto
foi quando me deparei com um cachorro,
jurei-lhe amor eterno
abracei-o com todo meu afago acumulado e sai do recinto sem pagar...